REVISTA GO OUTSIDE: Sangue nos olhos

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A incrível saga do mountain biker cego Adauto Belli pelas trilhas sinistras da ultramaratona Cape Epic, na África do Sul (Gustavo Ceratti)

 

EM MEIO ÀS 603 DUPLAS do mundo todo que encararam as trilhas pesadas da ultramaratona Cape Epic 2011, na África do Sul, um atleta brasileiro em particular chamou a atenção de todos. Com garra, alto astral e determinação impressionantes, Adauto Belli se lançou nas pirambeiras da competição como se não estivesse nem aí para um ?pequeno? porém: devido a um problema na retina, ele não enxerga.

Guiado pelo parceiro Mário Roma em uma bike para duas pessoas, ele percorreu os 707 quilômetros em oito dias do desafio, de 27 de março a 3 de abril. A dupla completou a prova na 132ª colocação, mas a maior vitória de Adauto foi mesmo superar suas limitações para conseguir curtir a aventura do princípio ao fim.

Desde criança ele sofre de retinose pigmentar, um processo degenerativo que aos poucos destruiu sua retina. Aos 40 anos, Adauto não consegue ver quase nada, e possui apenas uma sensibilidade à luz. Isso nem de longe impediu esse brasiliense de praticar esportes, pelo contrário: ele se tornou atleta olímpico e coleciona participações em diversas provas de MTB e ciclismo.

Diante do irresistível convite de Mário, ciclista português, radicado em São Paulo e organizador de provas de ciclismo e mountain bike como a Claro 100 km e a Brasil Ride, Adauto não titubeou e topou a empreitada. A dupla usaria uma bike tandem, muito mais pesada e difícil de ser controlada do que uma convencional. Nada que tirasse o bom humor da dupla, que se conheceu no ano passado, quando Adauto se inscreveu para a Brasil Ride ao lado de uma colega. ?Quando soube que uma das duplas de tandem contava com um atleta cego, achei muito louco e fiquei com aquilo na cabeça?, conta Mário.

O português é dono da RC Bikes, nova marca de bicicletas do mercado brasileiro, e precisava testar um modelo tandem. ?Não tinha dúvidas de que faria isso do lado do Adauto e por isso pensei na Cape Epic?. Mário já havia participado quatro vezes da competição sul-africana, mas conta que esta foi a mais dura - e a mais sensacional. A seguir, um bate-papo com o atleta cego logo após seu retorno ao Brasil:

Go Outside: Completar a Cape Epic deve ser dureza, não?

Adauto Belli: É preciso foco e garra extraordinários para completar uma ultramaratona como essa. Foi uma prova de superação, de muita dor e esforço. Você tem de condicionar muito bem o corpo e, principalmente, a mente. Se o atleta não estiver com a cabeça no lugar e com sua atenção toda dirigida para a competição, não consegue completá-la.

Qual o momento mais marcante lá na Africa do Sul?

No penúltimo dia e prova, nosso pneu furou duas vezes antes da metade da etapa. Nossa amiga Raquel Contijo estava um pouco à nossa frente e ouvi ela cair antes que o Mário pudesse vê-la no chão. Ainda bem, porque assim o Mário conseguiu frear - ela estava desacordada, caída no meio do singletrack logo depois de um drop, e poderíamos tê-la atropelado. Nossa disposição de pedalar foi por água abaixo ao nos depararmos com essa situação tão triste. Depois de 1 hora e meia ali ajudando a Raquel, a ambulância finalmente chegou. Respiramos fundo, procurando motivos para retornar o pedal. Estávamos pertíssimo de sermos cortados da prova após tanto tempo parados. Até que o Mário virou para mim e disse: ?Soca a bota!?. Cruzamos a chegada 10 minutos atrasados, sendo automaticamente desclassificados. Mas os fiscais reconheceram nosso espírito esportivo por termos parado para socorrer outra ciclista e nos autorizaram a largar no último dia. Foi um final de prova emocionante.

Você se lembra de alguma história engraçada dessa parceria?

Foram várias. No final de uma etapa, estávamos cansados e não víamos a hora de cruzar a linha de chegada. Faltavam ainda uns 40 quilômetros, e o Mário quis se aproveitar da minha sensibilidade auditiva para saber se estávamos perto. ?Tenta escutar a música da chegada?, ele me disse. Respondi, às gargalhadas, que nem o Super Homem conseguiria escutar algo àquela distância. O pior foi que ele falou sério, com aquele sotaque português. Não me agüentei.

Quais os sentidos estão mais aguçados quando você está pedalando?

Na competição eu ficava muito atento ao pedal, esperando a energia que vinha dele. É ali que tudo vai ser decidido, pois, se você errar a pedalada em um dowhill, corre o risco de derrubar o piloto da frente. Fora isso, prestava atenção nas instruções que o Mário me passava e tentava copiar o que ele fazia e como o corpo dele se comportava, principalmente, nos momentos em que não dava tempo de passar instruções.

Você foi o primeiro brasileiro cego a completar a Cape Epic. Sua limitação visual parece não ter te impedido de aproveitar a prova, né?

Não vou dizer que eu não gostaria de ver o que estava acontecendo. Mas existem formas diferentes de se aproveitar os momentos. Não enxergar não significa que eu não estava presente, pelo contrário: eu estava lá vivenciando cada segundo.

Quando você começou a pedalar?

Em 2007, quando eu trabalhava como treinador de cães. Por acaso estava treinando o cachorro do organizador do Projeto Deficientes Visuais na Trilha. Fui motivado por ele a pedalar em uma bicicleta tandem. Fiz um teste ao redor de um lago e gostei tanto que pedalamos por 80 quilômetros.

Por que o esporte é tão importante na sua vida?

Com o esporte, tudo melhora: a autoestima, a disposição. Com ele a vida fica mais simples. Você larga em uma prova e tem que chegar até o fim, e pronto.

Como era a sua vida antes do esporte?

Eu tenho um canil onde treino cães. Antes me dedicava mais a essa atividade, pois era de onde tirava a maior parte do meu sustento. Também já fui lutador, mas tive que abandonar a modalidade por causa das lesões. Fiquei dez anos sem praticar nenhuma atividade esportiva, até que, felizmente, me acertei com o ciclismo em 2007

Texto publicado na revista Go Outside, edição 72, de maio de 2011, de autoria de Gustavo Ceratti.

 'Revista GO OUTSIDE, edição 72, de maio de 2011'