O ciclismo é o meio de transporte urbano associado aos maiores ganhos psicológicos, mostra estudo europeu com mais de 3,5 mil participantes. Aumento da vitalidade e redução da autopercepção do estresse e do sentimento de solidão estão entre os benefícios
Editora: Ana Paula Macedo
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Saúde
16 •CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, domingo, 19 de agosto de 2018
» VILHENA SOARES
A bicicleta é conhecida por ser amigado meio ambiente e pelos benefícios ao corpo de quem a inclui na rotina, como perda de gordura e fortalecimento dos músculos. Mas além dos benefícios físicos, as pedaladas contribuem para a saúde mental dos seus adeptos. Pesquisadores mostram o feito em um estudo com 3.567 moradores de sete cidades europeias, destacando resultados como maiores níveis de vitalidade, autopercepção do estresse e menos sentimento de solidão.
“Todos os efeitos positivos para a saúde que encontramos podem ser resultado de uma repetida alta satisfação com o uso da bicicleta na vida diária. Esses níveis de bem-estar podem ser explicados pelo fato de a bicicleta poder oferecer independência, ser econômica e agradável e conseguir criar identidade — os ciclistas gostam de se identificar como ciclistas”, lista ao Correio Ione Ávila Palencia, pes-
quisadora do Instituto de Saúde Global de Barcelona (ISGlobal), na Espanha, e principal autora do trabalho, publicado na revista científica Enviromental Health.
A turbinada na saúde mental não é exclusividade dos ciclistas europeus. Marco Antônio Correa, 43 anos, morador do Jardim Botânico, comemora aqui também. Sempre que pode, o técnico de informática pedala os cerca de três quilômetros que separa a casa onde mora do colégio onde trabalha, no Lago Sul. Nesses dias, a disposição é outra. “Sinto que o meu estresse diminui, eu chego com mais motivação para trabalhar”, conta.
Nos fins de semana de Marco Antônio, a bicicleta também tem vez. “Sempre tento ir a um lugar que tenha a vista bonita, com uma paisagem diferente, como uma cachoeira, porque é o tipo de ambiente em que apenas conseguimos ir a pé ou de bicicleta.
Ela proporciona esse tipo de experiência na natureza que eu acho extremamente agradável e me faz muito bem”, ressalta.
Ana Rayssa/Esp. CB/D.A Press
Marco Antônio costuma usar a bicicleta para trabalhar e nos fins de semana: “Sinto que o meu estresse diminuiu”
Principais dimensões
O relaxamento e o bem-estar também foram constatados pelos cientistas europeus. O estudo faz parte do projeto de pesquisa Atividade Física Através de Abordagens de Transporte Sustentável (PASTA, pela sigla em inglês), financiado pela União Europeia e realizado em sete cidades: Londres (Inglaterra), Antuérpia (Bélgica), Barcelona Espanha), Orebro (Suécia), Roma (Itália),Viena(Áustria) e Zurique (Suíça).
Todos os participantes, que tinham ao menos 18 anos, responderam a um questionário sobre a relação entre locomoção e saúde, com perguntas que abordavam questões como frequência do uso de diferentes modos de transporte — carro, moto, transporte coletivo, bicicleta, bicicleta elétrica e caminhada —, como os indivíduos percebiam a própria saúde e quais relações sociais estabeleciam (solidão e contato com amigos e/ou familiares).
A equipe concentrou-se nas principais dimensões de saúde mental (ansiedade, depressão,
perda de controle emocional e bem-estar psicológico), de vitalidade (nível de energia e fadiga) e de estresse percebido. Os resultados mostram que o uso regular da bicicleta produz os melhores resultados em todas as análises.
Comparadas aos outros meios de transportes, as bikes foram mais associadas a melhor autopercepção da saúde geral, melhor saúde mental, maior vitalidade, menor autopercepção do estresse e menos sentimento de solidão.
O segundo modo de transporte que proporcionou mais benefícios foi a caminhada— associada a boa autopercepção da saúde geral, maior vitalidade e maior contato com amigos e ou familiares. “As descobertas foram semelhantes em todas as cidades estudadas. Isso sugere que o transporte ativo, especialmente o uso da bicicleta, deve ser incentivado para melhorar a saúde e aumentar a interação social”, comenta Ione Ávila Palencia.
Coesão social
Segundo a pesquisadora, o trabalho é o primeiro a avaliar a associação entre o uso de bicicletas e medidas de contato social.“Tem sido sugerido que o uso desse modo de transporte pode afetar as percepções sociais e, portanto, ter implicações significativas para o bem-estar e a coesão da comunidade”, diz Ione Ávila Palencia. “Todos esses resultados sugerem que o uso da bicicleta como meio de transporte poderia ajudar a melhorar a coesão social em uma comunidade ou um bairro,reduzindo os sentimentos de solidão da população.”
Mônica Pinto Messias, 48 anos, vive e comemora o impacto social que o ciclismo pode proporcionar. A aposentada é deficiente visual e participa do Deficiente Visual na Trilha, um projeto de ciclistas de Brasília que buscam dividir a paixão pelas bikes com pessoas com limitações visuais.
“Sempre fui ligada a esportes, mas a bicicleta não era uma possibilidade, porque eu sabia que não podia pedalar sozinha. Com o DV, isso mudou”, diz Mônica.
Para ela, o convívio social é um dos pontos em que o esporte e o projeto mais têm impactado sua vida. “É muito bacana porque andamos em bicicletas duplas que, por si só, já chamama atenção. As pessoas param para conversar. Quando você vai ver, já está batendo papo e ajudando alguém que estava com o pneu furado. Fiz muitos amigos”, conta.“Além dessa sensação de bem-estar, há o vento no rosto, o contato com a natureza. A minha disposição aumentou, me motivou a fazer outras atividades”, completa.
Gustavo Moreno/Esp. CB/D.A Press - 13/7/16
Mônica é uma das participantes: “A bicicleta não era uma possibilidade”
Simone Cosenza,48 anos, é psicóloga e uma das coordenadoras do DV na Trilha. Ela conta que, assim como Mônica, todo o grupo de voluntários e deficientes sente os efeitos benéficos do ciclismo desde que a iniciativa começou, em 2004. “Escolhemos ajudar pessoas com deficiência visual durante um evento de fim de ano, mas tivemos tanto sucesso que ele segue até hoje. Sentimos que o esporte fez muito bem a eles, como faz para nós. Desenvolvemos laços que viraram amizades.” O projeto conta 26 pessoas com deficiência visual e cerca de 100 voluntários.
“Temos uma grande lista de espera. Acredito que isso mostra o sucesso do DV na Trilha. Sucesso que percebemos também na melhora da qualidade de vida das pessoas, no aumento da autoestima e das relações sociais”, avalia Simone.
Maria Luísa Mandovano/Divulgação
Grupo DV na Trilha: pedaladas vencem a deficiência visual e melhoram a autoestima e as relações sociais
PARTICIPE
O projeto DV na Trilha aceita voluntários e doações de bicicletas. Mais informações no site www.dvnatrilha.com.br
Palavra de especialista
A importância da motivação
“Esse estudo chama a atenção por abordar a saúde comportamental que, à primeira vista, não é considerada quando falamos do benefício do uso da bicicleta. Mas sabemos que essa prática envolve um ritual. As pessoas se unem, acabam formando grupos, é realmente uma forma maior de se sociabilizar, que pode proporcionar ganhos para a mente. Além da psique, sabemos que a bicicleta atua na prevenção de problemas crônicos, como hipertensão e diabetes, mas é sempre bom destacar que o mais importante para realizar esportes é a motivação. Ela tem um papel importante pois é o que vai fazer você manter o exercício na rotina. Essa sociabilidade envolvida no uso da bicicleta é algo que contribui para que as atividades físicas se tornem presentes no cotidiano. O motivo social é extremamente positivo”
Páblius Staduto Braga, médico do Esporte do Hospital Nove de Julho, em São Paulo.
Dia de celebrar e refletir
Hoje é comemorado o primeiro Dia Nacional do Ciclista, criado para lembrar a necessidade do convívio harmônico entre as diferentes formas de transporte. No ano passado, o Senado aprovou a data como uma forma de homenagear o estudante de biologia Pedro Davison, morto, em 2006, depois de ser atingido por um motorista enquanto pedalava na faixa central do Eixão Sul. Segundo os criadores do projeto, a data serve também para estimular a reflexão acerca da importância da bicicleta como um transporte do futuro.
Novas demandas
Apesar dos benefícios para a saúde mental constatados na pesquisa europeia, além de outros estudos voltados para as vantagens fisiológicas das bicicletas, Ione Ávila Palencia destaca que o meio de transporte não é muito comum no continente. “A porcentagem de pessoas que pedalam regularmente permanece baixa em todas as cidades, com exceção da Holanda e da Dinamarca. Isso significa que há muito espaço para aumentar o uso de bicicletas.”
A pesquisadora do Instituto de Saúde Global de Barcelona (ISGlobal) destaca ainda que o tipo de abordagem conduzida na pesquisa permite uma análise mais “realista” da rotina nas grandes cidades, considerando flexibilidades na forma de se locomover. “As pessoas tendem a usar mais de um meio de transporte”, explica. “E o estudo nos permitiu destacar o efeito positivo da caminhada, o que, em estudos anteriores, não foi muito conclusivo.”
Mark Nieuwenhuijsen, coordenador do estudo e diretor da Iniciativa de Planejamento Urbano, Meio Ambiente e Saúde no ISGlobal, chama a atenção para a importância de as cidades se adaptar a essas novas práticas. “O transporte não é apenas uma questão de mobilidade. O estudo mostra, mais uma vez, que uma abordagem integrada ao planejamento urbano, ao planejamento de transporte e à saúde pública é necessária para desenvolver políticas que promovam o transporte ativo.”
Males em alta
A psicóloga Nicole Santos sinaliza outra questão voltada às políticas públicas. Ela frisa que atividades que contribuam para a saúde mental precisam ser incentivadas, principalmente devido ao aumento de casos de transtornos psicológicos. “Em um momento em que temos mais casos de depressão e ansiedade, é importante ver como a bicicleta pode contribuir para a prevenção desses problemas. Ela promove o encontro de grupos, sensações positivas, como o vento no rosto, ver o céu, faz com que tenhamos
contato com o mundo”, diz.
Para a especialista, as formas como as pessoas usam os meio de transporte precisam ser analisadas com outros olhos, considerado efeitos além do deslocamento. “Vemos que, na história humana, a evolução da locomoção desencadeou para o individualismo. No começo, o homem fazia caminhadas. Depois, tivemos a invenção da roda. Com ela, veio a carruagem, a bicicleta e, hoje, temos o carro, onde as pessoas passam uma parte considerável do tempo em um ambiente isolado. É importante termos a noção de que o transporte não é só se locomover, ele também pode promover a saúde”, justifica. (VS)
Fonte: Correio Braziliense