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Correio Braziliense: A Sensação de Voar

Ciclistas que perderam a visão reencontram a liberdade ao pedalar por trilhas do cerrado e de estradas Brasil afora.

 

Leandro Bisa - Da equipe do Correio

 

CORREIO BRAZILIENSE: A Sensação de Voar 

Eles pedalam com vontade. Mas as cores ao longo do caminho não podem ser apreciadas. Os sons da catraca e dos pneus em contato com o solo soam na escuridão. O vento no rosto e a sensação de voar dão ao grupo a dimensão da velocidade na estrada. Esses ciclistas são diferentes. Têm mais vontade de vencer que os demais. E a primeira vitória se dá no momento em que sobem nas bicicletas e deixam para trás limitações, preconceitos e os próprios medos. Eles têm certeza: se a cegueira não os derrotou, nada os derrotará.

 

Esses atletas aprenderam a acreditar no próprio potencial. Alunos do Centro de Ensino Especial para Deficientes Visuais (CEEDV) aceitaram o convite para participar do projeto criado por voluntários, ciclistas amadores que treinam e passeiam juntos por estradas e trilhas do DF e de outros locais do país. O início da parceria ocorreu no Natal de 2004. Estimulados pela solidariedade própria da data, integrantes de grupos ciclísticos de Brasília visitaram o CEEDV e levaram cegos para passear em bicicletas tandem (feita para duas pessoas).

 

Naquele momento, o grupo de ciclistas percebeu que poderia fazer mais. Por um ano, juntaram dinheiro para comprar bicicletas. Conseguiram quatro e, em abril deste ano, começaram a treinar. A estudante Elisângela de Oliveira, 33 anos, foi a primeira deficiente visual a participar do projeto. Ela é capaz de contar em detalhes a experiência de pedalar pela primeira vez após perder a visão. Chovia no momento. "Subi na bicicleta com meu condutor (ciclista que vai na frente, responsável por guiar a dupla) e dei uma volta. Foi muito bom. Senti liberdade", lembra a estudante.

 

Ela perdeu a visão direita aos 19 anos, após uma forte dor de cabeça. A vista esquerda escureceu aos poucos, ao longo de três anos. "Sofri atrofia do nervo ótico e nunca mais enxerguei", explica a ciclista. Na época, trabalhava durante o dia e cursava o ensino médio à noite. Era extremamente ativa. Mas, após perder a visão, trancou-se em casa e em si mesma. Parou de trabalhar, estudar e só saía acompanhada. Há dois anos, ela descobriu o CEEDV. "Aprendi a usar a bengala e caí no mundo. Passo o dia na rua", conta.

 

O funcionário público aposentado Wallace Paschoal Gonçalves, 51 anos, é o mais bem-humorado do grupo. Não perde a chance de fazer piada. "Alguém limpa meus óculos que não estou enxergando nada", grita antes do treino, no último sábado. Ele perdeu a visão em 2003, após sofrer um descolamento de retina. "É uma coisa dura. Eu dirigia, andava para tudo quanto é lugar. Teve momentos que tive vontade de morrer", confessa Wallace.

 

Aos poucos, ele reaprendeu tudo. Passou a fazer esportes e redescobriu a bicicleta, veículo que não usava há 30 anos. "Antes de perder a visão, meu único esporte era levantar copos. Virei atleta e me identifiquei com a bicicleta", diz. Wallace já pedalou de Brasília a Pirenópolis (GO) e costuma fazer trilhas, seu terreno preferido para pedalar. "Quando o condutor anuncia que há descida à frente, a sensação é de ser jogado no espaço. Liberdade, emoção e medo, tudo se mistura", descreve.

 

Outro que gosta de velocidade e trilhas é o estudante Henrique de Sousa Café, 14 anos. O garoto perdeu a visão aos 3 anos e diz não se lembrar de nada no mundo das cores. O jovem frequenta o CEEDV desde pequeno e sempre praticou esportes. Fez judô, equitação e natação. Mas diz que se descobriu como esportista no ciclismo. "Achei o mais emocionante. Uma vez, atingi 74 km/h na descida da matinha (no Lago Sul, próximo à Ponte JK)", conta o adolescente. Antes de entrar no projeto, ele até andava de bicicleta na rua onde mora, em Samambaia. Enquanto pedalava, um dos irmãos, sentado no quadro, guiava. "Mas era só brincadeira", explica.

 

Leomon em notícia do Correio Brasiliense - 30/09/2006O caçula do grupo em idade e no Projeto é o estudante Leomon Moreno da Silva, de 13 anos, que participa dos treinos há dois meses. Sua capacidade de visão é de apenas 30%. Talvez, por isso ele seja o mais inquieto. Gosta tanto de pedalar que costuma se arriscar a andar de bicicleta sozinho. É preciso gritar e pedir para que ele volte. Caso contrário, ele vai embora sem se importar aonde vai chegar.

 

O resultado dos treinamentos já renderam algumas medalhas aos quatro ciclistas. Em julho, eles participaram no autódromo de Interlagos, em São Paulo (SP), do Torneio Seletivo para o Mundial de Ciclismo Paraolímpico. Henrique chegou em segundo lugar, Wallace tirou o terceiro e Elisângela conquistou o lugar mais alto do pódio, cada um em sua categoria.

 

Apesar dos bons resultados, nenhum deles alcançou o índice exigido para participar do mundial. Engana-se quem pensa que eles desanimaram. Os treinos continuam todos os domingos. Eles querem, um dia representar, o país na competição internacional. Uma das coordenadoras do projeto, a psicóloga Simone Cosenza, 37 anos, explica que a intenção principal do trabalho é proporcionar aos deficientes visuais melhor qualidade de vida, uma opção de lazer e maior interação social.

 

Fotos: Monique Renne - Especial para o CB

 

Fonte: Correio Braziliense

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